* Colaborou Leandro Paulo Bernardo
Jamais esqueci quando o saudoso sambista João Nogueira afirmou no também saudoso programa Grandes Momentos do Esporte que “todo brasileiro nasce flamenguista, depois alguns degeneram”. Seguindo essa teoria, eu degenerei sem nenhuma espécie de remorso, porém, não posso apagar momentos especiais na minha lembrança, especialmente a conquista de 1987.
Morava na Rua Renato Galvão em Quipapá, no interior de Pernambuco. Era uma rua pequena, ao lado do campo de futebol, com 11 crianças que viviam futebol intensamente: Leonardo, Jorge Luís, Leandro, Kléber, Kleyton, Denílson, Airam, Jaderlan, Arimatea, Marco Maciel e um garoto apelidado de Furico (até hoje não sei o nome dele).
Vínhamos da euforia da Copa de 1986, das figurinhas do chiclete Ping Pong, assistir à reprise da novela Vereda Tropical, colecionar a revista Placar, fabricar times de botão e jogar muita bola na rua. Eu era o caçula da turma e seguia a tradição da rua: torcer para um clube no Rio de Janeiro, um em São Paulo e um em Pernambuco.
Optei pelo Flamengo por causa de Zico e Leandro, além de poder rivalizar com meus irmãos que detestavam o rubro-negro carioca. Vimos o maior jogo do mundo, São Paulo e Guarani pela final do Campeonato Brasileiro de 1986, em uma caravana até a cidade vizinha, já que o sinal da TV Globo estava ausente em Quipapá. Todos aguardavam o campeonato de 1987 com ansiedade.
Recordo que meus irmãos falavam da bagunça de quem deveria organizar o campeonato e da tentativa de enxugar a competição ao estilo italiano, que chegava em nossas casas via TV Bandeirantes naquele ano. O Clube dos Treze organizou aquele campeonato, peitando CBF, alguns políticos e federações.
Lógico que foi um erro crucial não incluir o Guarani, segundo melhor time de São Paulo entre 1985 e 1989, colocar o Goiás, que nem era o maior do estado na época, e acima de tudo, para nós pernambucanos, era estranho não ver Sport e Náutico. Em Quipapá correu um boato de que o lobby de Marco Maciel – o político, não o meu vizinho – foi notório para incluir apenas o Santa Cruz. Todavia foi um campeonato simples, gostoso de acompanhar e extremamente lucrativo para todos.
O Campeonato começou em uma sexta-feira a noite, meia hora depois da primeira partida a CBF “batizou um filho que não tinha feito nem criado” e determinou que haveria um cruzamento entre os módulos verde e amarelo. O Clube dos Treze afirmou que após o fim da Copa União ninguém jogaria contra os vencedores do módulo amarelo.
No sábado, vimos uma novidade. Antes de cada partida haveria um sorteio para definir qual jogo iria ser transmitido. Nossa primeira partida foi Botafogo e Goiás e praticamente toda a turma assistiu lá em casa. Antes do jogo iniciar meu pai delegou uma missão para meu irmão mais velho: me levar para tomar a última vacina. Toda a vizinhança me acompanhou até o posto de saúde – a última vez que isso havia acontecido foi quando Marco Maciel quebrou o braço.
Enquanto isso, o Campeonato Brasileiro era um desfile do Atlético Mineiro comandado por Telê Santana, o Flamengo arrancando na reta final e a precisão cirúrgica do Internacional de Ênio Andrade. O São Paulo (do gol mais lindo da competição feito por Dario Pereira contra o Fluminense) não chegou nas semifinais por um erro do juiz José Roberto Wright na partida entre Cruzeiro e Santos, que validou um gol ilegal do meia Careca. Até hoje penso que se tivesse um Paulista entre os finalistas a polêmica nem existiria.
Assim as semifinais foram entre Internacional e Cruzeiro, enquanto a outra seria entre Flamengo e Atlético com a ampla vantagem no regulamento para o Galo. O primeiro encontro seria num domingo, 29 de novembro, meu aniversário. Haveria uma festa lá em casa e minha mãe pediu para meu pai convidar verbalmente alguns parentes. Ele espalhou para todos que a festa seria no sábado, dia 28. Ainda lembro quando puxei sua camisa e disse; “pai, meu aniversário é no domingo, dia 29”. Ele respondeu; “mas menino, domingo tem O JOGO”.
Minha mãe pediu para meu pai “reconvidar” todos para o domingo. A turma ficou num quarto vendo o jogo e só saiu para a festa depois dos noventa minutos. Na quarta seguinte, já com meu pai mais calmo por ouvir a narração sem barulho, aconteceu um jogo épico, Flamengo e Galo fizeram a partida da década. Zico, Bebeto e Renato Gaúcho calaram o Mineirão.
Nos dois domingos seguintes o Flamengo quebrou a barreira colorada e sagrou-se campeão nacional. Enquanto isso, ninguém se preocupava com a mudança de regulamento, só sabíamos algo do Sport quando um torcedor chamado Juscelino (tinha uma barraca de doces na frente do cinema) falava sobre o clube no módulo amarelo e que seu presidente Homero Lacerda iria lutar até o fim pelo “cruzamento”. Guarani e Sport chegaram a decisão, sem transmissão da Globo ou da Bandeirantes.
A final foi adquirida pelo SBT, talvez por desforra da CBF com a Globo. Nossa curiosidade era ver o futebol interromper o Programa Silvio Santos e como seria a narração do Ivo Morganti. Contudo, o mais folclórico naquela “decisão” foi que ninguém saiu vencedor, depois de chegarem a um “onze a onze” nas penalidades os diretores aclamaram os dois campeões. Ali já se percebia a vontade subliminar de tumultuar um campeonato tão lindo que foi a Copa União.
Homero Lacerda comprou a briga e fez da polêmica sua eterna bandeira. Em 1990, fez sua campanha para senador em cima disso. Quando foi a Quipapá tive vontade de xinga-lo, porém, ele estava acompanhado do ator e candidato a deputado Arnaud Rodrigues. Como Arnaud fazia sucesso com as crianças e pagou picolé para todos, até esqueci a presença do chefe da polêmica.
Hoje reconheço que os torcedores do Sport fazem aquilo que qualquer outro torcedor faria. Anos depois veio algo maior para o clube, após saber usar essa polêmica: a inclusão no Clube dos Treze. Foi o aporte financeiro para que “ a madeira de lei que o cupim não rói” crescesse e se tornasse uma hegemonia estadual e regional.
Nessa guerra o que não permiti foi a fraqueza do Flamengo em aceitar isso, a soberba carioca foi fraca perante os entraves jurídicos que começavam a dar o ganho para o Sport. Parecia prever que no futuro todos iriam dizer que o Sport foi o campeão, talvez por preguiça dos torcedores em explicar todo o contexto daquele ano ou pela imprensa acatar uma resposta simplória e conveniente da entidade maior, a CBF.
A partir de 1995 deixei de ser torcedor do Flamengo, nada mais no clube da Gávea cativava minha ideologia de futebol. Sport e Guarani foram para a Libertadores de 1988 e defino que o rubro negro pernambucano foi o campeão da CBF… em um campeonato que não foi dela. A CBF naquele ano só teve autoridade moral para aclamar a conquista do Americano e do Operário nos módulos azul e branco. Mas aí já será outra história, da qual poucos vão lembrar.
* Leandro Paulo Bernardo – Cirurgião-Dentista, apaixonado por futebol, literatura e música desde os quatro anos, e com o coração dividido entre o Santa Cruz e a Portuguesa