* Colaborou Leandro Paulo Bernardo
Entre 1987 e 1992, duas revistas tinham presença constante em minha casa: Placar e Bizz. Em 1987, compramos todas as edições da Placar, por uma figurinha não completamos o álbum da Copa União (ah, Genílson do Cruzeiro!) e, graças aos maravilhosos escudinhos para botões, naquele ano produzimos muito da nossa coleção de times. Assim fui agraciado, pelo meus irmãos, com a minha primeira seleção de botão: a Bolívia.
Barreiro, Ferrufino, Vera, Arias, Soria, Villegas, Veizaga, Justiniano… Até hoje recordo os nomes do “meu escrete”, que era baseado no time pré-olímpico. Mas, como toda a criança que descobria o futebol naquela década, o importante era conhecer o craque, já que sabíamos quem era Zico, Maradona, Platini, Lineker e outros.
O craque daquela Bolívia pré-olímpica não usava a camisa dez – usava a camisa vinte – era um jovem negro e franzino, com um apelido muito chamativo para uma criança de cinco anos: Ramiro Castillo Salinas, “El Chocolatín”. Para mim, torcedor do Santa Cruz, era como ver Ataíde ou Henágio em campo.
A Bolívia lutou muito, mas não se classificou para os jogos de Seul. Em 1989, pude reencontrar a “minha seleção” na Copa América. O guia da Placar apontava “El Chocolatín” como o destaque da Bolívia, após realizar um bom campeonato pelo Argentinos Juniors.
Quando foi treinar o Argentinos Juniors, após passar pela seleção boliviana entre 1987 e 1988, Nito Veiga solicitou a contratação de dois jogadores do Instituto de Córdoba: Oscar Dertycia e Ramiro Castillo. Ao ser questionado sobre o boliviano, afirmou que se Castillo fosse argentino ou brasileiro certamente estaria jogando na Europa e valendo milhões de dólares.
A seleção caiu na primeira fase, mas algo diferente estava nascendo no futebol boliviano. A base daquele pré-olímpico estava ganhando maturidade, experiência internacional e somava-se com a explosão de dois jovens talentos do Destroyers: Erwin Sánchez e Marco Etcheverry.
Em 1991, a seleção brasileira estreou na Copa América contra a Bolívia. Chocolatín vinha de uma boa temporada no River Plate e teve boa atuação naquele jogo, que já anunciava as futuras dificuldades que a seleção brasileira teria contra a Bolívia. Depois haveria mais três jogos históricos entre Brasil e Bolívia, porém, Castillo nunca mais seria titular nesses confrontos.
Chocolatín já não era o titular absoluto, tampouco a referência principal da seleção, mas era imprescindível ao futebol do país. Depois de jogar em River Plate, Rosario Central e Platense, retornou ao clube que o profissionalizou: o The Strongest. Até hoje, foi o boliviano com mais partidas no campeonato argentino: 146 partidas.
Dizem que o auge na Argentina foi no Argentinos Juniors, mas a timidez e a eliminação precoce do River Plate na primeira fase da Libertadores de 1991 – após um “estranho” empate do Boca Juniors com o Oriente Petrolero – atrapalharam a passagem por um clube de maior visibilidade mundial. Nesse período, muitos jornalistas achavam que o futebol argentino não o merecia – pelos casos de racismo e xenofobia com os bolivianos.
Casado com a namorada de adolescência, desde a transferência para o Instituto de Córdoba em 1987, tinha três filhos e estava cansado das constantes mudanças de cidades que atrapalhavam a adaptação da família e a vida escolar das crianças.
Em maio de 1993, inaugurou com os irmãos uma academia de futebol na região metropolitana de La Paz, oferecendo muito além de futebol. A academia visava a um apoio cultural, social e desportivo para os jovens oriundos do Yungas – região com alta concentração de afro-bolivianos a aproximadamente 120 quilômetros da capital.
Após a vitória contra o Brasil nas eliminatórias, Castillo demonstrou o quanto eram fortes seus laços com a família, dando uma volta olímpica com o filho José Manuel nos ombros. No mundial dos Estados Unidos, Ramiro Castillo jogou apenas 28 minutos na derrota para a Espanha. Chegou a jogar o campeonato da segunda divisão chilena pelo Everton e já cogitava deixar o futebol.
Retornou novamente ao The Stongest e jogou muito em 1996. Foi eleito pelo jornal El Deber o melhor jogador boliviano do ano, em votação que incluía os jogadores que atuavam na Bolívia e em outros países. No início de 1997, surpreendeu a imprensa boliviana ao aceitar um convite para jogar no Bolivar, o grande rival do The Stongest, onde era ídolo inquestionável.
O ano de 1997 seria diferente para o futebol boliviano. Apesar do fracasso da seleção nas eliminatórias para o Mundial da França, o país iria sediar a Copa América e com grande chance de conquistar um troféu para coroar aquela geração.
Chocolatín reassumiu a titularidade, jogou o fino da bola na competição, cadenciou divinamente aquele meio de campo sendo o cérebro para coordenar a liberdade de Etcheverry e Sánchez, fundamental no jogo contra o México pela semifinal.
Durante o aquecimento para a final contra o Brasil, chegou a informação de que o filho de Castillo estava no hospital. Ele abandonou o campo e acabou se ausentando da final. A notícia abalou o elenco e no dia seguinte o pequeno José Manuel acabou morrendo de insuficiência hepática.
Chocolatín entrou em depressão, ainda retornou ao Bolívar e jogou uma partida pela seleção contra o Equador pelas eliminatórias no dia 12 de outubro. Na manhã do sábado, 18 de outubro, foi encontrado enforcado com uma gravata no pescoço. Um dia antes, José Manuel faria oito anos, no dia seguinte haveria o clássico entre Bolívar e The Stongest.
O leitor pode se perguntar, e a Bizz? Por qual motivo foi citada no primeiro parágrafo?
Em 1991, uma das primeiras revistas da nossa coleção noticiava a morte do filho do guitarrista e cantor Eric Clapton ao cair do 45°andar. Para mim, com nove anos, foi traumático e triste saber que uma criança de quatro anos havia caído de tamanha altura. Eric Clapton transformou a dor em música e escreveu a linda “Tears in heaven” em homenagem ao filho.
Quando os jornais e a “nascente” internet noticiaram a morte do Chocolatin, associando o ocorrido com a depressão que o jogador vinha passando após o falecimento do filho, naquele momento lembrei de uma parte de “Tears in heaven”:
“I saw you in Heaven?
(Se eu te visse no Paraíso?)
I must be strong
(Eu preciso ser forte)
And Carry On
(E seguir em frente)
Cause I know I don’t belong here in heaven.
(Porque eu sei que não pertenço ao paraíso)”
A dor de Ramiro Castillo foi maior que a força, mas quem somos nós para julgar ou “balancear” esse duelo? Especialmente depois que somos agraciados com essa bênção chamada Filhos.
Minhas recordações sobre Ramiro Castillo, ou ouvir a música “Tears in heaven”, trazem um sentimento doloroso e paradoxalmente belo, algo de chorar ou ficar feliz por saber o quanto um amor paterno foi demonstrado aqui nesta Terra, individualista e egoísta.
Em 2012, a família deixou de administrar a academia, os novos donos tornaram o clube profissional e o denominaram de Club Ramiro Castillo, adotaram as cores laranja e branco além da cidade de El Alto, que a partir desse ano possui o estádio mais moderno do país.
Conheci o clube em 2015, ano em que ficou próximo de ascender para a primeira divisão e desde então tem feito boas campanhas no futebol boliviano. Torci muito, fiz amizade com um brasileiro que jogava lá, e tenho certeza de que o nome Ramiro Castillo será eterno no futebol.
* Leandro Paulo Bernardo – Cirurgião-Dentista, apaixonado por futebol, literatura e música desde os quatro anos, e com o coração dividido entre o Santa Cruz e a Portuguesa