* Colaborou Leandro Paulo Bernardo
Quando criança, um barulho representava que já estávamos na madrugada: o apito do trem chegando na estação de Quipapá, já que a linha férrea passava a alguns metros do quintal de casa. Durante um tempo, o barulho me causava medo, até que no Natal de 1987 a magia do trem mudaria meus sentimentos. Após cinco anos de atraso, conheci minha avó paterna, que morava justamente na frente daquela estação.
Passei a frequentar constantemente aquela estação e, mexendo nos meus arquivos futebolísticos, acabei descobrindo uma incrível história do primeiro jogador estrangeiro que foi contratado por uma equipe nordestina e que marcou seu nome também no futebol sul-americano: Pedro Mazullo (também encontram-se registros com Marzullo ou Mazzullo).
O quê mal saberia é que a chegada do uruguaio ao Brasil se relaciona com aquela estação ferroviária e com minha vida, talvez algo que possa ser explicado com a música “Trem das sete”, de Raul Seixas.
“ÓI, ói o trem, vem surgindo de trás das montanhas azuis, olha o trem
ÓI, ói o trem, vem trazendo de longe as cinzas do velho éon”.
O Campeonato Pernambucano de 1918 contou com seis equipes da capital: Santa Cruz, Náutico (favoráveis ao amadorismo), América, Sport (favoráveis da importação de jogadores), Torre e Flamengo. Seria o quarto estadual, com o Sport em busca do tricampeonato. Curiosamente, América e Sport nunca haviam se enfrentado, sempre ficavam em grupos diferentes. Para 1918, ficou acertado que o campeão sairia após dez rodadas com pontos corridos. Finalmente haveria o confronto entre esmeraldinos e rubro-negros.
Para evitar casos ocorridos nas edições anteriores, em que jogadores vinham de outros estados apenas para disputar as partidas finais, a Liga Sportiva Pernambucana determinou que um jogador só estaria apto para atuar se estivesse morando no estado há no mínimo dois meses, a “lei do estágio”.
O Sport tentou contratar com antecedência os atacantes Paulino, do América-RJ, e Cyro Wernek, do Botafogo-RJ, que haviam disputado as finais de 1916. No entanto, não teve êxito. Então, a diretoria foi buscar na terra da celeste o atacante Pedro Mazullo.
Pedro Mazullo era um pedreiro que havia se destacado em jogos de bairro até ser contratado pelo Nacional em 1910. A chegada dele foi revolucionária para o clube. Era a primeira vez que pessoas de origem humilde eram aceitas no futebol uruguaio. Defendeu Central Español e chegou ao Peñarol em 1912.
“ÓI, já é vem, fumegando, apitando, chamando os que sabem do trem
ÓI, é o trem, não precisa passagem nem mesmo bagagem no trem”.
O Sport montou uma grande operação para trazer o uruguaio, dizem até que pagou para a tripulação do navio queimar carvão ao invés de lenha. O navio saiu de Montevidéu no dia 13 de maio de 1918 e atracou no porto do Rio de Janeiro. Depois, Mazullo e representantes do Sport pegaram um navio para Maceió.
Ao chegarem à capital alagoana, duas versões são apresentadas para um único destino. A primeira versão foi noticiada na página 2 da edição de 22 de maio de 1918 do Jornal Pequeno, de que a comitiva foi até a sede da Great Western (empresa britânica responsável pela linha férrea São Francisco – Recife a partir de 1903) e alugaram um automóvel com medo da viagem de trem não chegar no dia previsto.
A outra versão foi apresentada na edição 658 de 1982 da revista Placar, de que a comitiva alugou uma pequena locomotiva e seguiu de trem. Segundo o Jornal Pequeno houve uma parada em Laje do Canhoto para solicitar uma declaração de que já estava na divisa com Pernambuco (entre a cidade alagoana de São José da Laje e Canhotinho em Pernambuco).
O destino final daquela viagem era mesmo a primeira estação ferroviária daquela rota, na cidade pernambucana de Quipapá.
“Quem vai chorar, quem vai sorrir?
Quem vai ficar, quem vai partir?
Pois o trem está chegando, tá chegando na estação”.
Precisamente à meia noite do dia 21 de maio de 1918, a comitiva chegou à estação ferroviária de Quipapá, na entrada da cidade. Muitos curiosos foram para a estação. Uns acharam estranho devido ao horário incomum para chegada de um veículo no local, outros pensaram que era algo relacionado às festividades municipais, pois a cidade comemora a emancipação no dia 19 de Maio. O chefe da estação era Umbbelino Cavalcanti, que estava no local juntamente com o prefeito Manoel Ramos, após receberem a notícia do telegrafista Pompeu Américo Galvão.
Os dirigentes do Sport pediram informações e foram até a casa do delegado Manoel de Hollanda Cavalcanti solicitar informações e abrigo. Pela manhã, foram até o fórum de Quipapá e solicitaram um documento ao juiz da comarca, José Gomes Villar, afirmando que Pedro Mazullo havia chegado em Quipapá no dia 21 de maio. Alguns daqueles curiosos testemunharam no fórum e confirmaram a precisão do horário. A delegação descansou e ficou aguardando o próximo trem para o Recife.
O uruguaio estava apto para atuar justamente no dia 21 de julho, quando haveria o jogo entre América e Sport no British Club (atual Museu do Estado). Até aquele momento, o América era líder com quatro vitórias, incluindo um 10 a 1 no Náutico. O Sport tinha três vitórias e uma derrota para o Santa Cruz.
O Mequinha atropelou o Sport por 6 a 1, com três gols de Zé Tasso. O campeonato ficou paralisado entre setembro e dezembro devido à gripe espanhola. O irmão de Pedro, Antônio Maculo, também viria para o Sport no decorrer do campeonato, era zagueiro e teria sido indicado pelo atacante uruguaio. O América foi campeão com oito vitórias, uma derrota para o Santa Cruz e um empate com o Flamengo. O último jogo do Mequinha foi a vitória por 3 a 1 contra o Sport. Pedro Mazullo marcou o gol de honra do Leão.
“ÓI, olhe o céu, já não é o mesmo céu que você conheceu, não é mais”.
O Sport havia inaugurado o próprio campo na Avenida Malaquias naquele campeonato (embora o primeiro jogo tenha sido América e Flamengo) e resolveu fazer um jogo festivo contra o Botafogo, do Rio de Janeiro. A partida ocorreu 14 dias depois de perder o estadual e o Leão levou uma goleada: 6 a 1. Mazullo marcou o gol de honra do Sport novamente. Dizem que o uruguaio chegou a atuar como jogador e treinador simultaneamente no Sport, todavia não existem registros do fato, tampouco da saída.
Os próximos “achados futebolísticos” de Pedro Mazullo foram no América, do Rio de Janeiro, em 1920 e no Americano, de Campos dos Goytacazes, a partir de 1921, nos famosos Campeonatos Campistas, do qual foi campeão em 1923.
Pedro Mazullo encerrou a carreira em Campos dos Goytacazes, permaneceu na cidade por alguns anos como treinador, primeiro no Americano e depois no Goytacaz. Foi o responsável por levar um selecionado uruguaio para jogar em Campos. Na primeira partida, a seleção de Campos venceu por 3 a 0 com Mazullo jogando pelo Uruguai. A segunda partida terminou empatada sem gols.
Em 1933, foi o primeiro técnico remunerado da história do Corinthians e conquistou 16 vitórias, dois empates e 12 derrotas. Um ano depois treinou o Santos por alguns jogos e depois foi contratado pelo Santiago Wanderers, do Chile, para disputar campeonatos amadores.
“Vê, ói que céu, é um céu carregado e rajado, suspenso no ar”.
O sucesso para Pedro Mazullo foi muito rápido no futebol do Andes. Após se destacar na liga de Valparaiso, acabou treinando a seleção chilena no Sul-Americano de 1935. No ano seguinte, foi contratado pelo Colo Colo e, assim como no Corinthians, acabou sendo o primeiro treinador profissional e remunerado do Cacique. Depois de nove partidas (três vitórias, dois empates e quatro derrotas), saiu do Colo Colo e ficou definitivamente na seleção chilena.
Entre 1936 e 1939, dirigiu a seleção chilena por apenas 12 partidas oficiais (duas vitórias, um empate e nove derrotas). Contudo, entrou para a história do futebol chileno ao comandar a primeira vitória da Roja fora do Chile na Copa América (duas vitórias foram na edição de 1926, sediada no Chile).
No dia 10 de janeiro de 1937, após 20 derrotas e dois empates, a seleção chilena venceu a seleção uruguaia por 3 a 0 no Velho Gasômetro, em Buenos Aires. Naquela Copa América, o Brasil venceu o Chile por 6 a 4, jogando com a camisa do Boca Juniors.
Por alguns anos, Pedro Mazullo ainda treinou alguns clubes profissionais de Santiago e o time da Universidade Santa Maria, mas o trabalho mais duradouro foi no Cemento Melón (um dos clubes que originou o atual Union La Calera), até hoje reconhecido como o grande comandante dos “fosfatos”. Os últimos relatos da carreira dele são do início da década de 1950.
“Ói, olha o mal, vem de braços e abraços com o bem num romance astral…”
No início da década de 1950, a Great Western deu lugar à Rede Ferroviária do Nordeste até que, em 1957, foi criada a empresa estatal Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA). Os serviços se estenderam por 40 anos até a desestatização, promovida em 1997 pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso.
A RFFSA foi oficialmente extinta por força da medida provisória nº 353, de 22 de janeiro de 2007. No final de 2007, houve uma grande festa em Quipapá devido a um projeto de reativação da malha ferroviária. Praticamente toda a cidade e região estava na frente da velha estação para ouvir o discurso do governador de Pernambuco e outras autoridades. Em forma de protesto, não fui. Fiquei na praça com minha namorada.
Depois das enchentes de 2010, as obras foram suspensas e nunca mais retomadas. Somente em Alagoas o desperdício foi de R$ 120 milhões. Como a distância entre as antigas estações de Maceió e Quipapá é de aproximadamente 120 quilômetros, podemos fazer uma analogia de que para cada quilômetro da viagem de Mazullo houve um desperdício de R$ 1 mi, 82 anos depois.
Daqueles trens da minha infância, prefiro recordar apenas o barulho mágico, do escoamento dos produtos de engenhos e usinas da mata, da força de cidadãos que honraram aquela empresa, inclusive diversos pais de amigos.
Quero recordar especialmente a última vez que vi e toquei em um trem, no inverno de 1998. Coincidentemente, o último dia que vi minha avó. Após pular por alguns vagões, vi minha avó sentada na calçada, em frente à estação ferroviária. Já estava morando em Recife havia seis meses e não falava com ela havia muito tempo. Pedi a bênção, ela me abençoou e alisou meu cabelo. Anos depois ela partiu e meu coração ficou batendo parado naquela estação… mas aí já é outra música, para outra história.
* Leandro Paulo Bernardo – Cirurgião-Dentista, apaixonado por futebol, literatura e música desde os quatro anos, e com o coração dividido entre o Santa Cruz e a Portuguesa.