Em junho, completa-se 85 anos da morte do mito Carlos Gardel. Não vou começar esse texto com a dúvida histórica: era uruguaio ou argentino? Para mim, não importa se ele veio de Tacuarembó ou se nasceu em Toulouse. Todavia, as melhores histórias dele relacionadas ao futebol foram em terras uruguaias.
Ainda que descrevam El Morocho como fanático apenas por turfe e boxe, fotos históricas demonstram que ele amava futebol. Vivenciou como poucos a “époque d’or” do futebol do Rio da Prata e, até hoje, é amado dubiamente, mesmo onde existe cisma.
Uma contradição moderna coloca Gardel como torcedor do Independiente, apesar da história antiga apontar que era do Racing. No outro lado do rio, carboneros afirmam que ele torcia para o Peñarol, bolsilludos têm a certeza do lado tricolor do cantor, principalmente pela presença mais frequente no Parque Central do que em Pocitos.
A dúvida sobre o local de nascimento do cantor veio em um momento especial, no qual o mundo do futebol tinha as atenções voltadas para o Uruguai. No dia 13 de julho de 1930, França e México faziam o primeiro jogo da história dos Mundiais, para um público de mil pessoas no saudoso Estádio Pocitos.
Nesse mesmo dia, Gardel “fez um gol” para a alma charrua semelhante aos de Pedro Cea naquela Copa do Mundo. Ele concedeu uma entrevista ao Diário Imparcial se declarando uruguaio, nascido em Tacuarembó.
A notícia provocou um choque emocional nos jogadores argentinos, tal qual “enfartou” toda Buenos Aires. Aquela seria realmente a Copa de Gardel. Ele assistiu outras partidas, inclusive uma especial para o Brasil.
A foto abaixo, retirada da internet, tem a seguinte legenda: “Gardel en el Parque Central el 14/07/1930”, afirmando que ele estava presente no primeir ojogo do Brasil em Copa do Mundo (Iugoslávia 2 x 1 Brasil). Restaram, para nós brasileiros, as dúvidas.
Ele vibrou com o gol do Preguinho ? O Gardel, vendo o rival jogar, estava com “alma” de torcedor argentino ou uruguaio?
Após a final, os uruguaios criariam outra lenda, através de uma canção relacionada a Carlos Gardel e ao futebol. Em 1928, durante os Jogos Olímpicos de Amsterdã, Carlos Gardel decidiu acompanhar a seleção argentina.
Numa festa noturna com os jogadores em um quarto de hotel cantou diversos temas e, pela primeira vez, o tango Dandy: “ahora te llaman, los que no te conocieron , cuando entonces…”.
A foto abaixo marcaria esse momento. Na final daquela Olimpíada, a Argentina perderia para o Uruguai no jogo extra por 2 a 1, após empatarem a primeira partida por um escore para cada lado.
Dizem os uruguaios que dois dias antes da final da Copa do Mundo, ele apareceu para o jantar na concentração da equipe argentina no Hotel Barra de Santa Lucia e cantou para a equipe até meia-noite.
Para recuperar o prestigio momentaneamente perdido pela entrevista, Carlos Gardel cantou “Dandy” novamente. Depois do resultado da final, a canção ficaria proibida em qualquer vestiário argentino eternamente.
Francisco Varallo afirmou em entrevista que os jogadores argentinos, apesar da declaração bombástica, haviam prometido a vitória daquele mundial para Gardel após a visita do cantor à concentração. Don Pancho relatou que os jogadores ficaram emocionados e, após todos cantarem um tango (“Daddy” talvez?), Gardel falou: “muchachos, deixem a canção comigo, tratem de se concentrar na final”.
Ao final do mundial, Carlos Gardel, usando da “bipolaridade diplomática”, foi aos vestiários visitar os amigos uruguaios para conhecer a taça Jules Rimet.
Jose Leandro Andrade era o cérebro dessa geração. Foi chamado pelos franceses de “La merveille noire” (a maravilha negra) pelo fino futebol. Além da bola, era uma figura bastante conhecida na Europa pela alegria e jeito boêmio no qual se apresentava em festas nas estadias uruguaias no Velho Continente.
Em certa ocasião, houve grande repercussão na Europa quando dançou um tango de Carlos Gardel com a famosa cantora e dançarina Josephine Baker.
Nesse clima de boemia do craque charrua, outra lenda foi criada. Carlos Gardel havia organizado um concerto em Paris, aproveitando-se da presença das duas seleções que, após viajarem de trem em vagões separados, iriam aguardar os aviões na capital francesa. Seria mais uma tentativa de acabar com o rancor gerado pelas finais olímpica e mundial.
Raimundo Orsi, que depois se naturalizou italiano, estava naquele concerto. Tinha grande admiração de Carlos Gardel – uma das teorias para afirmar que o cantor torcia pelo Independiente. A disputa de egos transformou o show em uma grande luta.
Dizem que Raimundo Orsi brigou com Leandro Andrade e quis bater nele com um violino Stradivarius de um dos músicos da orquestra.
Em termos de clubes, o cantor foi idolatrado por todas as torcidas. Na Espanha, tinha uma grande amizade com os jogadores José Samitier, do Barcelona, e Ricardo Zamora, do Espanyol. Zamora e Samitier eram amigos desde as categorias de base do Barcelona.
Mas, quando o arqueiro se transferiu para o Espanyol, surgia um dos dilemas da carreira profissional de Zamora: enfrentar o amigo Samitier.
O goleiro conheceu o Uruguai e Carlos Gardel aqui na América do Sul, quando em 1926 o Espanyol veio até Montevidéu para uma série de amistosos. No dia 14 de julho, derrotaram o Nacional por 1 a 0, sendo o goleiro Ricardo Zamora imbatível e eleito o melhor jogador da partida.
No dia 18 de julho, o duelo entre Peñarol e Espanyol marcaria o embate entre duas estrelas do futebol mundial nos anos 1920: José Piendibene e Ricardo Zamora. El maestro já não jogava mais pela Celeste por estar brigado com a direção da associação uruguaia de futebol. Até hoje, tem o recorde de gols no clássico contra a Argentina: 17.
Em certo momento da peleja, Piendibene recebeu uma bola à frente de Zamora. Fez que chutaria no ângulo direito, mas conseguiu enganar o goleiro, arrematando no lado oposto. Zamora ainda conseguiu saltar para o outro lado, roçar a bola, mas não impediu o gol. Por ter suplantado o melhor goleiro do mundo, Piendibene ganhou um chalé de presente dos dirigentes do Peñarol.
Na tribuna oficial do Parque Central, Carlos Gardel era uma das testemunhas do feito de Piendi. Ao término da partida, enquanto a torcida eufórica carregava o atacante em uma maca, Carlos Gardel foi ao vestiário do Parque Central o aguardar para felicita-lo.
Os jornais da época descreveram a celebração e euforia do cantor: “Carlitos Gardel, que aumentó temblandoante el tiro, y gritó su alegría en sus mejores tonos de voz”.
Naquela noite memorável, Carlitos Gardel em um show dedicou ao jogador Piendibene nada menos do que o tango “Farabute”(escrita por Antonio Casciani ).
Em 1928, o Barcelona visitou a América do Sul para disputar amistosos na Argentina e no Uruguai. Dizem que Gardel influenciou muito a vinda da equipe espanhola. No Uruguai, acompanhou a delegação do Barcelona quase como um embaixador charrua.
A turnê azul grená no Uruguai coincidia com apresentações dele no Teatro Solis, em Montevidéu, entre 27 de agosto e 4 de setembro de 1928.
Na estreia dia 27, o Peñarol jogou com Estevez, Nogues, Sagosto; Riolfo Fernandez Aguerre; Pérez, Sacco,Piendibene, Anselmo e Cappolo. Com dois minutos marcou um gol, através de Piendibene.
Samitier estava no banco machucado. No dia anterior, já havia dito a Morocho que não jogaria. Mas o próprio Gardel, em um quarto do hotel, convenceu-o a jogar. Chamando-o pelo apelido: “Olha Sami, você tem que jogar até 10 minutos, para que os nobres meninos do meu país o vejam”. O jogador confirmou o fato na edição do diário “El Pueblo” de 4 de julho de 1935.
Samitier entrou e marcou o gol de empate, depois de três minutos em campo. O jogo foi muito violento e áspero. Samitier sentiu uma lesão nas costas. Sastre e Piera se machucaram também. Os catalães terminaram o confronto com nove jogadores, mas mantiveram o resultado em 1 a 1. A imprensa uruguaia criticou a equipe carbonera por não obter a vitória.
No dia 31, houve um grande baquete para o time visitante para, no dia 1º de setembro, enfrentarem o Nacional – que jogou com a seguinte formação: Mazzalf, Buceta Fernandez; Andrade, Piriz,Vanzino; Urdinarán, Scarone, Petrone, Pedro Cea e Saldombide.
Seria uma revanche para ambos, pois durante o famoso “Giro Europeu” do Nacional em 1925 houve um empate por 2 a 2, no velho El Camp de Les Corts, para um público de 50 mil pessoas. Samitier marcou os dois gols do Barcelona. Urdinarán e Héctor Scarone marcaram para o Nacional. O vídeo abaixo mostra alguns momentos desse jogo.
A partida iniciou com Samitier jogando, mas em seguida sofreu uma lesão na perna esquerda. Mancando visivelmente, foi substituído por Arocha. Um minuto depois, Vancino fez de cabeça o primeiro gol uruguaio. Aos 35, veio o segundo gol, depois de um tiro impressionante do “índio” Saldombide, que foi rebatido pelo goleiro e Pedro Cea completou para as redes.
A segunda etapa foi mais equilibrada. Mas, em uma cobrança de falta, Héctor Scarone enviou a bola para a rede. Aquele gol foi marcante para o craque uruguaio, pois em 1926 ele havia jogado pelo clube catalão, após o sucesso do giro de 1925. No entanto, não conseguiu sucesso pelo clube catalão.
A partida terminou e a imprensa definiu os tricolores como o melhor time do país, exigindo que a base da seleção fosse dos bolsos, apesar das conquistas recentes do Peñarol e do Rampla Juniors após o “cisma” de 1922. Dizem que dos dois confrontos, apenas o jogo do Nacional teve a presença do cantor.
Finalizando os jogos do Barcelona em Montevidéu, a equipe ainda assistiu a uma apresentação do cantor. No dia 2 de setembro, Carlitos foi ao porto se despedir dos amigos. Ainda teve tempo de tirar uma foto com os jogadores Vincenç Piera (à esquerda) e Franz Platko (à direita).
Ao retornar para a Espanha, o time foi muito criticado pelas derrotas sofridas na excursão. A imprensa ignorou o fato de que naqueles dois países jogava-se o melhor futebol da década. Os resultados eram derivados do excesso de jogos marcados pelos dirigentes e os jogadores estavam cansados por uma liga duríssima (nessa época, as partidas eram muito violentas).
El Mago Samitier foi um dos mais criticados, tamanha era a expectativa sobre as atuações dele. O jogador ficou bastante deprimido, porém, respondeu às criticas com o titulo do campeonato de 1929, o primeiro Campeonato Espanhol da história. Em gesto de amizade, Gardel dedicou-lhe o tango instrumental Sami, ao finalizar turnê pela Espanha em maio daquele ano.
Além daquela apresentação, no primeiro dia daquele mês, Carlitos gravou uma segunda versão de Patadura, citando seus amigos Sastre, Piera, Platko, Zamora e Samitier (chamando-o de Sami na gravação). A versão original citava os jogadores argentinos; Miguel Seonane (Independiente), DomingoTarasconi (Boca Juniors) Pedro Ocho(Racing) e Luis Monti (San Lorenzo).
A reciprocidade de amizade entre Gardel e os espanhóis era cativante. Em 1931, o Barcelona viajou para Londres para disputar algumas partidas. Carlos, que estava em Paris, decidiu visitar os amigos, mas não quis viajar de avião e resolveu aguardar outro momento para as visitas. Dias depois, ao saber que o amigo Samitier havia se machucado após um jogo muito violento contra o Real Madrid, foi até o hospital.
Em 1933, Samitier alegou que não tinha respeito da diretoria do Barcelona e tampouco apoio financeiro. Atendeu a um convite do amigo Zamora e jogou uma temporada no arquirrival Real Madrid. Foram campeões, mas El Mago resolveu parar de jogar. Chegou a ser treinador do Atlético de Madrid, quando em 1936 aceitou um novo convite de Zamora e foram jogar no Nice da França por três temporadas.
Sami é o terceiro maior artilheiro da história do Barcelona e Zamora é considerado o maior goleiro espanhol em todos os tempos, tanto que a premiação de melhor goleiro do campeonato recebe o nome dele até hoje.
Enquanto isso, no Uruguai, outros fatos acirrariam ainda mais a torcida para ter Gardel como torcedor de um, entre os dois gigantes clubes uruguaios. Em certa ocasião, durante uma entrevista conduzida pelo jornalista Luis Ignacio Lecaldare, Gardel dizia ser fã do Racing de Buenos Aires e do Peñarol em Montevidéu. Ao ser perguntado sobre o porquê da simpatia pelos aurinegros, ele respondeu: “porque eles são as pessoas”.
Quando Enrique Ballestero, campeão do mundo em 1930 e da Copa América em 1935, deixou o Rampla Juniors para jogar no Peñarol, já tinh o apelido de octopus (em referência ao polvo), pois seus “tentáculos” fechavam completamente a baliza. A torcida do Peñarol afirma que Gardel fez uma referência ao arqueiro no tango Leguisamo solo, que relata a vida do jóquei uruguaio Irineo Leguisamo. No entanto o jóquei também era conhecido por pulpo (polvo).
“Alzan las cintas; parten los tungos como saetas al viento veloz… Detras va el Pulpo, alta la testa la mano experta y el ojo avizor. Siguen corriendo; doblan el codo, ya seacomoda, ya entra en acción… Es el maestro el que se arrima y explota um grito ensordecedor”.
O cantor admirava muito a posição de goleiro e ainda gravaria um último tango referente ao futebol, com alusão a “um gol tomado” e não alcançar um êxito profissional no futebol… Mi primer Gol.
No outro lado, a torcida do Nacional justifica que, em certa ocasião, o cantor viajou para a pequena cidade de Santa Lucia, cerca de 65 quilômetros ao Norte de Montevidéu, e ficou hospedado no Hotel Bilmore junto da delegação tricolor. Afirmou ser torcedor do Nacional e mostrou para os jogadores uma música inédita até aquele momento: “Palomita Blanca”.
Para confirmar a versão tricolor da tese, em 2013 a instituição aproveitou a ocasião do Dia do Património no Uruguai e inaugurou uma estátua de Carlos Gardel, em tamanho real no Estádio Parque Central. A escultura foi um trabalho do escultor e artista Alberto Sarabia, é feita de barro coberta com fibra de vidro. Baseia-se na imagem de 1928, quando Gardel estava no estádio assistindo ao jogo contra o Barcelona.
Em 1934, Gardel já era um ídolo mundial, tendo entrado no mercado americano e gravado alguns filmes. No futebol, o domínio já não era mais dos países do Rio da Prata. No ano seguinte, o cantor veio fazer uma turnê pela América do Sul.
No dia 24 de junho o avião em que ele estava chocou-se com outro na cidade de Medellin. Gardel deixou os palcos reais para continuar imortal na alma, nos pensamentos e nos ouvidos do povo latino.
A voz dele até hoje ecoa no imaginário, pulsa nas artérias e veias abertas. Ainda pensamos: “a cada dia, esse cara canta melhor”. Ou, como certa vez disse meu pai (que possui um extraordinário gosto musical), “a voz mais bela da América”.